Uma vez me disseram que conhecer alguém de verdade é mais simples do que parece. Levei isso comigo e ponderei sobre por muito mais tempo que deveria. Conhecer as várias facetas de uma pessoa não soa nem um pouco simples, tampouco raso. Acho que por muito tempo meu erro foi esse, entender as duas coisas como sinônimos. Algo pode ser simples e profundo ou raso e complexo, tudo depende daquilo que se decide enxergar e compreender, pessoalmente, prefiro olhar para o lado mais contraditório e paradoxal do assunto, é aí que a diversão reside.
A compreensão daquilo que me foi dito me veio somente após uma sequência de acontecimentos que se espalharam ao decorrer de anos. Mas, para que o contexto se instale, colocarei o que eu acredito ser a sequência das minhas memórias, definitivamente antes de tal compreensão.
Meu segundo ano da faculdade estava prestes a começar e eu havia anunciado desemprego pós auto demissão - tudo gritava liberdade. Minhas expectativas com o mundo eram outras: mais altas, esperançosas e ingênuas. Todo dia era brilhante, podia, e devia, ser conquistado diante da minha autoestima (que na época era um cadinho maior do que hoje). Recém feita as pazes comigo mesma, artisticamente falando, era um brotinho começando sua revolta com o que é belo. Sempre atraída por ele, o belo. Nunca recompensada ou reciprocada, caia em armadilhas do tal perfeccionismo, o véu da inocência atrapalhando minha visão. Depois de algumas críticas mal colocadas, só restou ressentimento, dúvida e desesperança com um toque especial de raiva, que me fez florescer nova e diferentemente minhas várias mídias artísticas.
Entendo que tudo é um processo longo, exaustivo e nem sempre recompensador mas, lidando com a minha arte, a rigidez que levo comigo mesma teve que ser trabalhada de forma muito mais longa e exaustiva do que muitos outros aspectos meus. Devo gratidão a algumas pessoas pelo caminho no qual me encontro agora. Pelo meu afeto - a quem dedico essa crônica fajuta, nesse caso, separaria quase todo espaço dos agradecimentos de um livro nunca publicado exclusivamente a ele.
Menino, garoto, rapaz e homem, ele já havia tangenciado meus círculos de amigos, tínhamos trocado duas ou mais palavras ao decorrer do ano de 2019, mas foi em 2020 que de fato algo aconteceu, num espaço no qual eu nunca fico, o aquário do vão da FFLCH. Matar aula sempre foi uma tarefa difícil pra mim, por isso costumo exercer prática com afinco para tentar melhorar minhas técnicas de substituição de tempos acadêmicos por recreativos.
Conversa vai, conversa vem e ficamos só eu, ele e alguns gatos pingados na sinuca. Sou de natureza esquecida e deixei passar completamente o fato de que sou uma condenada do 809U-10, consegui perder o último ônibus! Que tristeza. Isso significava que eu iria das duas, uma: gastar dinheiro com um uber (isso ainda não tinha se tornado um vício) ou pegar o metrô. Confesso que a segunda opção nunca chegou perto de ser concebida por mim naquele momento por conta de uma terceira via que apareceu oportunamente na boca de quem me acompanhava. Por que não dormir no CRUSP, residência tão querida de nosso querido agora conhecido?
Já estávamos na metade do caminho mesmo, um teto viável, tão perto e cômodo me convenceu a entrar no que seria uma das maiores e melhores aventuras da minha vida. A Lua cheia dava sua bênção para nós dois que passamos a esmo pela Praça do Relógio. Éramos tão jovens, tão cheios de vontade, curiosidade um no outro que quase não percebemos. Eu, pelo menos, percebi e guardei para mim mesma um sinal tão grande quanto aquele.
A graça da juventude é que existe nela uma pressa preguiçosa quando se trata de assuntos como o cortejo. Ávidos, somos inconstantes, malandros, deixamos tudo o que tocamos às avessas. Conversamos até a Lua se cansar e nos deixar falando sozinhos. Nenhum beijo foi trocado. Falamos tanto sobre essa pressa juvenil que nem estranhei quando fui embora de lábios largados. Na realidade conversamos sobre tudo, todos os assuntos que me interessam foram pautados, tanto por mim quanto por ele. Isso me instigou, me deixou desesperada por mais e mais daquele conteúdo tão simples, profundo e inebriante.
Alguns dias depois "coincidentemente" perdi novamente o ônibus e fui parar novamente dentro do quarto dele, em cima de uma cama de solteiro, com ele à minha frente. Pensando em tudo, falando sobre quase tudo. Omiti certas partes dos meus desejos, afinal nem tudo que se nasce no peito é compartilhável à priori. Novamente, nossos corpos se encontravam sem nunca realmente se tocarem. Dessa vez, quando fui embora tratei de esquecer algo de importância relevante - um óculos - que me levasse ao encontro do moço no futuro próximo, mal sabia eu que o veria apenas meses e meses pós pandemia.
Justamente no dia seguinte foi anunciado pela faculdade que as aulas haviam sido suspensas devido a um caso de covid dentro do departamento, outro causo de conexão interpessoal curioso, devo dizer. Lembro de passar o primeiro quarto de isolamento ansiando nosso reencontro numa medida diferente daquela que sentia por meus amigos. Escrevi sobre o quanto eu gostava de sentir o que estava sentindo mesmo que não entendesse o que seria no momento. Ouvia as músicas que colocamos juntos naquelas, agora longínquas, noites sem fim em repetição (esse hábito nunca chegou a mudar) enquanto fantasiava uma memória rebobinada desmesuradamente. Essa memória está tão gasta que já não sei discernir fato das pinceladas de sonho que adicionei a ela.
Minha mente se perturbava eternamente com questões demasiado importantes para serem tratadas ao mesmo tempo, de qualquer forma, tempo era algo que eu tinha à mão na época e me pus a filosofar cada vez mais sobre alguns tópicos que passamos na companhia um do outro como, por exemplo, amar à primeira vista é tão possível quanto as más primeiras impressões. Diferente do que se diz o senso comum, no entanto, esse amor nasce tímido, curioso, tão jovem como nós éramos e ainda somos. Crescendo pode complicar-se, murchar, arrepender-se, tornar-se difícil de lidar, assim como nós. Mas podando-se em doses homeopáticas esse amor pode crescer, ainda com todos os pesares disso, com mais estrutura, abrindo espaço para outras coisas aparecerem.
(Me atrevo a falar sobre isso agora mas a clareza mínima sobre o assunto me atingiu com procrastinação, só fui entender que isso podia ser a resposta das algumas das perguntas que me cercavam no parágrafo anterior quando percebi que uma pessoa havia me ensinado isso.)
Quando toda essa situação começou eu tinha 18 anos. Hoje, no auge dos meus 22, me pego contemplando o quanto duas pessoas podem se encontrar em diversos momentos da jornada que é a vida. Já outra pessoa, passados os tempos sombrios, comecei a encarar nossa estranha relação com cotidianidade corriqueira. Reconhecido por jogar prioridades pra lá e pra cá, o que chamamos de destino na verdade é o caminho que tomamos. Alguém com quem tive uma breve e intensa interação se tornou alguém que eu encontrava ao acaso, encontros esses com altíssima qualidade sem exceção.
Acho graça de não lembrar exatamente quando nos reencontramos, muito menos a ordem cronológica verídica que vivemos. Igualmente, não me importo. Minha versão é mais gostosa que a "original". Recordo de forma clara uma noite em que fomos andar de bicicleta na mesma praça em que a Lua nos observou pela primeira vez. Para o meu deleite, sempre digo que não sabia que eu fui a pessoa a apresentar o conceito de aluguel de bicicleta para ele só para ouvi-lo falar sobre essa memória a partir de seu ponto de vista. A virada, retorno aos gostosos primeiros dias, foi assim que uma greve universitária acabou. Dessa vez já havíamos tido tempo suficiente juntos e o cortejo já havia avançado significativamente para que minha boca só ficasse só, quando muito, num momento de conversa.
A brutalidade e a crueza me instigam muito, é raro um movimento de refinar como este que ocorre aqui. Seu toque, tão desejado, me ensinou a ser mais suave e macia. Suas palavras me inspiram poesia, apesar de costumar ter aversão a escrever esse tipo de coisa, agora me parece tão apetitoso quanto ouvi-la na melodia de sua voz.
Como todo cortejo, não se sabe aonde esse vai chegar, também não nos é importante. Derramo meu amor por ele agora, o futuro é um presente misterioso constantemente sendo desembalado. Um momento estou em meu quarto delirando sobre como parecemos lados opostos da mesma moeda, no outro estou em seu peito, quase abrindo as comportas que seguram a avalanche dos meus sentimentos para declará-los a ele. Pode ser que essa paixão toda um dia já não me pertença mais, mas me agarro ao que é meu.
O porquê dessa crônica ser feita é simples, complexo também. Quando se escreve, descobre-se aquilo que já se sabe. E eu sei que meu amor é meu, com ele eu ficarei para sempre independente de quem quiser compartilhá-lo comigo. Cabe a mim escolher em quem derramar meu amor. Como uma grande inspiração minha um dia cantou, eu pediria à Lua para levar meu amor com ela quando eu não estiver mais aqui para que continue a derramá-lo nas pessoas que eu amo, para mostrá-las o quanto eu sou parte delas e elas parte de mim.
コメント